A limitação da jornada de trabalho foi uma grande conquista dos empregados, isso porque durante a Revolução Industrial, ocorrida no Brasil no início do século XX, os trabalhadores eram submetidos a cargas horárias extremamente extensas, de 14 ou até mesmo 18 horas.

O legislador, ao criar os parâmetros do sistema jurídico e definir os princípios e diretrizes que regem uma sociedade, limitou a carga horária como escopo do direito social:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;

Isto posto, considerando a supremacia hierárquica das normas insculpidas na Constituição – nos termos da teoria de Hans Kelsen -, discute-se a aplicabilidade do art. 62, II da CLT, que assim dispõe:

CAPÍTULO II

DA DURAÇÃO DO TRABALHO

SEÇÃO II

DA JORNADA DE TRABALHO

Art. 62 – Não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo:

II – os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão, aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os diretores e chefes de departamento ou filial.

Ou seja, a CLT trouxe uma exceção face a Constituição Federal e criou a figura do “cargo de confiança”, de forma que os trabalhadores detentores dessa fidúcia especial não estariam subordinados a uma estipulação de jornada de trabalho, e, portanto, não teriam direito ao recebimento de horas extras.

Considerando que a Carta Magna situa-se em plano superior em relação a todas as normas infraconstitucionais (no presente caso, a CLT), nos casos concretos deveria restar prejudicada a aplicação desta última, todavia, a prática processual caminha em sentido oposto.

Por outro lado, podemos compreender que, ainda que os requisitos objetivo e subjetivo para cargo de confiança estejam preenchidos, e não seja tão somente uma nomenclatura pomposa e atribuída de maneira indevida – e diga-se que é um acontecimento raro entre os trabalhadores – (veja mais sobre os requisitos em “O que é cargo de confiança e quais os seus requisitos?” https://farneti.com.br/duvidas-frequentes/), o funcionário não deveria ter o direito ao recebimento de horas extras afastado, pois isso extrapolaria os limites constitucionais.

Ora, laborando em jornada superior à estabelecida na Norma Maior, o empregado faz jus às horas extras, posto que seu salário, ainda que acrescido de gratificação ou superior em relação aos demais empregados, remuneram tão somente suas responsabilidades, mas jamais uma jornada suplementar e habitual.

Note-se que este entendimento foi inclusive recentemente adotado pela Ilustre Magistrada Lucimara Schimidt Delgado Celli na 2ª Vara da Praia Grande, trazendo esta nova vertente. Vejamos:

Ora, o fato do reclamante ser detentor do cargo de confiança não exime a reclamada do pagamento das horas por ele trabalhadas acima dos limites constitucionais, até porque a garantia de salário mensal superior aos dos demais empregados, objetivava pagar o empregado por sua maior responsabilidade, não podendo o empregador exigir desse empregado labor fora dos mínimos limites físicos e legais. E no caso em testilha, apesar da reclamada ter ciência de que o reclamante atuava em jornada diária suplementar, não comprovou pagamento das horas extras por ele trabalhadas.

Diante do exposto, há de se considerar a veracidade da jornada laboral indicada pelo reclamante na inicial (…)”

(TRT-15, 02ª Vara do Trabalho de Praia Grande/SP, Processo nº 1000359-11.2020.5.02.0402)

Pelo exposto, entendo que se faz válida a análise da aplicabilidade do art. 62, II da CLT comparada à norma da Constituição, haja vista a hierarquia das leis, isto porque as empresas costumam se utilizar de um enquadramento indevido de seus colaboradores em suposto “cargo de confiança” (seja com certa fidúcia ou mesmo sem nenhuma) com a intenção de submetê-los a jornadas extensas, sem qualquer delimitação, suprimindo o direito constitucional às horas extras, o que implica em dano existencial e um verdadeiro retrocesso.